Entre a reorientação ideológica de Murray Rothbard e o realismo político de Isaiah Berlin

 A abordagem de dois lados de uma mesma moeda: talvez esta possa ser a analogia mais pertinente acerca da motivação de escrever a respeito do teórico social Isaiah Berlin junto do matemático Murray Rothbard. Os dois partem para lados aparentemente distintos, mas com uma mão numa ferramenta em comum: a liberdade do real liberalismo.

Se pudermos elencar um elo convergente entre os dois autores em questão, este não fugiria do singelo e por vezes exagerado otimismo (que pendia mais a Rothbard, é verdade), além da capacidade de ambos navegarem contra as correntes do rigoroso status quo. Rothbard e Berlin realocam noções que eram, e ainda são internalizadas em um nível profundo do entendimento da majoritária parte dos leitores convencionais.

Isaiah Berlin

Conceitos

Para tanto, Rothbard, em sua obra Esquerda e Direita, descreve razões pelas quais nos definimos em certo lado do espectro ideológico, rotulando não só os outros como a nós mesmos, sem ceder a devida atenção às alterações das circunstâncias políticas, distintas (ou que deveriam ser distintas) das circunstâncias de princípios ideológicos. Na prática, o autor se posiciona à esquerda, colocando uma pulga atrás da orelha do mais dogmático dos leitores, uma vez que Rothbard alimenta um pensamento liberal a priori. 

Em Uma Mensagem Para o Século XXI, Isaiah Berlin parece estender a discussão para o sujeito desejante, passível de um "otimismo imediatista", termo elucidado por Rothbard a respeito dos pseudo-liberais que caíram nas garras da desilusão e do pessimismo, resultando, portanto, no abjeto conservadorismo criticado pelo autor americano. 

Para Berlin, a ascensão das ciências naturais e do Iluminismo semeou um terreno para o que se imaginara ser também a resolução irrevogável das altercações do todo social, como se apenas um caminho e uma uniformidade se consolidasse na esfera social.

Contudo, Berlin destaca Maquiavel como o ponto de partida para tal desilusão e um aclaramento nem sempre aceito pelos revolucionários apressados: "[...] nem todos os supremos valores perseguidos pela humanidade agora e no passado são compatíveis uns com os outros". 

É o desentendimento sobre a afirmação acima que polariza os já extremados extremos, fazendo inclusive com que libertários e conservadores se unam e fixem o conceito de intervencionismo exclusivamente à esquerda, enquanto os oligopólios e a "grande empresa", descrita por Rothbard, se aproveitam do "conflito de fachada" entre os espectros ideológicos, que possuem uma diferença de valores e uma "pluralidade civilizacional", segundo Berlin, não significando, entretanto, um antagonismo indelével.

Esse desbalanceamento natural, isto é, a fluidez das ideias de um lado ao outro do espectro político, tendo em vista a compreensão da incompatibilidade e choque de valores, deveria pertencer ao contexto abordado por Rothbard, mas, na verdade, criaram novas maneiras de desalinhamento ideológico. Isso porque a certeza é um ferrenho motor para a satisfação humana, e ela, segundo Berlin, pode levar a sofrimentos evitáveis de inocentes, quando visualizada no ambiente sociopolítico ao alimentar a ilusória ideia de "solução final".

A própria postura de Berlin ao terminar seu ensaio nos atira frontalmente a uma impossibilidade que era também alvo de Rothbard. Ao dizer que "ninguém consegue tudo aquilo que deseja, não somente na prática, mas também na teoria", Berlin parece mais desesperançoso do que realista para quem caiu de paraquedas no fim de seu livro e deu de cara com tal sentença, mas o autor consegue, em partes, convencer o leitor de seu otimismo, dadas as circunstâncias que o mesmo expõe.

Radicalismo ou realismo

Um ponto de discrepância entre Rothbard e Berlin é a já elucidada concepção sobre o radicalismo, seja este como um fato imprescindível, para Rothbard, ou como uma remota possibilidade para Berlin, e este último dá a devida importância para as soluções utilitaristas. Sem a análise das consequências para o próximo, resta-nos apenas a convicção idealista que nasce tanto da superstição quanto dos valores considerados "primordiais". Rothbard, no entanto, vai contra a noção utilitarista e a posiciona do lado do conservadorismo, como uma ferramenta usada em defesa do status quo e contrária ao radicalismo que o autor sempre instigara.

Murray N. Rothbard

Ao viés revolucionário de Rothbard, Berlin esclarece que a verdade pode não ser interessante e ostensiva quanto a um viés convidativo para o radicalismo. Tal realismo de Berlin quanto à provável baixa atratividade da verdade parece nos jogar para a perspectiva mais benéfica do utilitarismo, enquanto Rothbard já parte da premissa de que o radicalismo é inexorável, embasado pelo desejo libertário por si só.

Diante da "receita para a perfeição", Berlin é mais cauteloso do que Rothbard, que se apoia no "ardente desejo de liberdade". À tal receita, Berlin aponta que esta seja a "fórmula para o derramento de sangue, ainda que receitada pelo maior dos idealistas, com o mais puro dos corações". 

Tal afirmação vai, talvez, de desencontro a Rothbard, que entende que o pontapé inicial da revolução liberal poderia ser suficiente para a sobrevivência do ideal libertário no futuro, isto é, a derrocada da Velha Ordem é irrevogável a partir do momento em que surge uma nova sociedade, mais livre e independente.

 Ao mesmo tempo, o autor condena o evolucionismo social que nos faz esperar pelo futuro ser resolvido. O americano parece acreditar nesse mesmo evolucionismo (no sentido de inevitabilidade) se, e somente se, houver um levante radical, uma "revolução permanente", como o mesmo elucida no início dos seus escritos. 

Ele aparenta acreditar na suficiência da parte como formadora do todo, com o desenvolvimento natural a partir de então como irremediável, mas Berlin apontava que "toda solução produz uma nova situação que gera suas próprias novas necessidades, e problemas". 

Nem todos os que justificam o progresso levam em conta as dificuldades para a posterioridade, e essa talvez seja a herança da esperança socialista das últimas décadas, que criou homens impacientes e cansados de esperar pelo inesperado.

À luz do avanço da psicologia, muitos não levaram em conta o vilanismo que a cultura demonstra como opressora dos desejos do homem, assim como outros muitos não consideraram a união cultura-indivíduoem torno de um objetivo comum: a proteção do indivíduo frente ao todo e aos seus semelhantes. Desse modo, a relação indivíduo-política é antes um jogo com altos e baixos do que uma concepção linearizada.

As igualdades entre os autores parecem florescer mais dos problemas apontados, que são em parte, é verdade, universais. Suas diferenças, no entanto, residem na formatação das soluções para tais problemas. Não a toa Berlin flutua entre o liberalismo e o realismo, ao passo que Rothbard se fixa entre o radicalismo e o mesmo liberalismo.


Referências:

ROTHBARD, Murray. Esquerda e Direita. São Paulo: LVM Editora, 2019.
BERLIN, Isaiah. Uma Mensagem Para o Século XXI. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2020.




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