Dostoiévski e Tolstói: o ponto de (des)encontro em duas obras essenciais
O primeiro ponto que o leitor deve se atentar para tal correlação é o fato de que as duas histórias são diametralmente opostas quanto à direção seguida pelos personagens.
Enquanto o personagem dostoievskiano caminha de uma percepção existencial repulsiva para uma nova percepção, Ivan Ilitch, idealizado por Tolstói, vai de alguns sorrisos para as lágrimas, que representam a tragédia espiritual do personagem.
Não obstante, as duas obras possuem reflexões pesadas e tortuosas, até mesmo a do suposto "final feliz"
Algumas confluências no meio do caminho evidenciam as minudências comuns não só à literatura dos dois, mas à literatura russa do século XIX, que respingou inúmeras influências ao existencialismo do século XX
"A Morte de Ivan Ilitch", por Liev Tolstói:
A poesia escrita de Liev Tolstói sempre despertou um singelo entusiasmo, embora suas histórias quase sempre possuíssem um quê de angústia. "A Morte de Ivan Ilitch" é uma dessas.
Nessa narração, Tolstói descreve a vida notória e, ao mesmo tempo, comum de Ivan Ilitch, que falece aos 45 anos de idade, acometido por uma doença que lhe definhava a vida aos poucos, como uma tortura consciente arquitetada por algo ou alguém.
De forma irônica e emblemática, aos moldes dos romances de Tolstoi, após uma queda ao estruturar a decoração de sua casa num tremendo alvoroço e excitação pelo sucesso de seu planejamento doméstico, a vida de Ivan nunca mais seria a mesma.
Antes disso, decidira se casar com Praskóvia Fiodorovna sem muita certeza de si, mas com o desejo de se fixar na vida como modo de aspirar a uma estabilidade nas suas funções profissionais. Tolstói claramente chama atenção para o aspecto meramente utilitário e mecânico do personagem no decorrer dos versos. Tudo fazia com uma finalidade: o status social que alcançaria.
Interligando uma temática de outro post, Carl Jung falava da questão do autoconhecimento, e como sua escassez deriva do incremento do conhecimento material e das realizações meramente sociais.
Nessa toada, Ivan entendia os dissabores da vida conjugal como um preço a ser pago, não em nome do amor e do matrimônio, mas em nome de sua reputação como um juiz e pai de família.
Ivan lutava tanto no trabalho para dar a si mesmo uma boa vida, que o perecimento da mesma lhe agonizou desesperadas sensações por ir embora cedo deste mundo sem aproveitar os frutos de tanto trabalho.
Nos momentos derradeiros, diz: "É como se eu estivesse descendo uma montanha, pensando que a galgava. Perante a opinião pública, eu subia, mas, na verdade, afundava. E agora cheguei ao fim".
Anos depois de Tolstói, Jean Paul Sartre preconizava que "o inferno são os outros". Os mesmos "outros" que perturbavam a individualidade do sujeito desejante. Nesse prisma, a agonia maior de Ivan Ilitch é posta sob luzes bem claras por Tolstói.
Trazendo mais para dentro da esfera existencialista, Albert Camus apontava a problemática acerca do homem, sendo este, segundo o autor, “a única criatura que se recusa a ser o que é”. Com isso, Camus indagava-nos se “esta recusa não pode levá-lo senão à destruição dos outros e de si próprio”.
Parece essa ser a mesma estruturação do personagem Ivan Ilitch. O tormento de Ivan Ilitch estava nos outros. Sentir que sua dor era um fardo para o próximo, ao mesmo tempo em que o próximo tentava engana-lo quanto a gravidade de sua situação, era angustiante.
Ademais, Ivan tinha claras impressões de que, por exemplo, no tribunal em que trabalhava, de que os outros lhe olhavam com um aspecto julgador, ou então oportunista, se dando conta de que Ivan iria deixar uma vaga para algum de seus colegas. Ainda havia aqueles que caçoavam de sua condição, como Schwarz.
"Se brilhava um raio de esperança, logo vinha um tempestuoso mar de desespero e sempre aquela dor, sempre aquela agonia invariavelmente." É com essa frase que Tolstói define a fragilidade das sensações, elucidando a alegria do homem contemporâneo, rodeado de objetos e pessoas, como um ponto ínfimo entre sofrimentos.
O desespero último de Ivan, além de fazer parte desse jogo de vai e vem entre sorrisos e lágrimas, residia no fato de que vivera uma vida correta e não mereceria perecer daquela forma agonizante.
"Talvez eu não tenha vivido como deveria. Mas como, se eu sempre procedi como era preciso?"
Finalmente, nos seus últimos segundos, Ivan parece ter encontrado algum sossego.
"O Sonho de um Homem Rídiculo", por Fiódor Dostoiévski:
"O Sonho de um Homem Rídiculo" é uma obra que penetra nas raízes do niilismo e suas consequências. A indiferença para com a humanidade pairava a mente do eu-lírico, que havia decidido se matar na noite de três de novembro. Naquele mesmo dia, entretanto, se depara com uma situação-chave em sua tomada de decisão prévia: a até então estranha confraternidade à agonia alheia.
O eu-lírico percebeu-se empático a alguém, uma garotinha que pedia socorro por algum motivo, fato este que não deveria ocorrer a um niilista, como Dostoievski o descrevera de modo exímio.
Após o ocorrido, o homem se pôs em sua poltrona e, depois de alguns vários meses sem dormir, consegue adormecer exatamente no mesmo dia em que encontrara a garotinha que lhe pedia ajuda. A "bravura" do suicídio se colocou de lado e seus olhos eram finalmente fechados, mas em decorrência do sono, que lhe levaria ao famigerado sonho.
Dostoievski é zeloso nos detalhes do "sonho intergaláctico" do homem ridículo, que caminha numa viagem espacial rumo a uma outra Terra, distante da original, e que, segundo o homem, era a "Terra não manchada pelo pecado original".
Nesse novo mundo, o eu-lírico se depara com pessoas puras e amorosas, cenário diametralmente diferente das perversidades e dos egos da Terra original.
Paralelamente à observação daquela nova terra redentora, surgia uma sensação de resistência em aceitá-la como uma espécie de "substituição" da sua terra antiga.
A mesma terra, a original, que lhe era tão vulgar, trazendo o desejo do suicídio, lhe emergia de súbito agora como uma saudade, um lugar que amava a sua maneira. O amor embaralhado que era assumido pelo eu-lírico: "Eu quero dor para poder amar", diz o homem.
O personagem de Dostoiévski se rende ao "amor doentio" da sua antiga Terra. Reflete se a dor é algo intrínseco ao ser, necessário para a vida, paradoxalmente. A sensação de nostalgia lhe bate quando experimenta algo tão inédito e assustador, uma nova Terra.
Será que, na nossa (Terra original), só podemos viver com a dor ou graças a ela? Não sabemos amar de outro modo nem conhecemos outro amor. Eu quero dor para poder amar. Quero, sim, neste momento apenas anseio por poder beijar, banhado em lágrimas, a Terra que abandonei! E não quero, não aceito nenhuma outra vida senão a da nossa Terra!
Essa transição radical de sentimentos era vista em Ivan Ilitch, que enchia-se de esperanças em alguns momentos, se regozijava com poucas situações, mas logo as colocava abaixo da tenebrosa dor moribunda da iminente morte. A nostalgia ao ver algo inédito (a morte) paira a mente de Ivan nos seus últimos dias, levando-o a considerar que quanto mais a alegria se afastava da sua "meninice", mais falsa e ilusória ela se tornava.
Ivan parece responder o questionamento do eu-lírico de Dostoievski acerca da dor ser ou não inerente à vida. De acordo com ele, desde a infância, quanto mais nos aproximamos do fim, mais ilusória a alegria se torna, dando sim lugar à dor, que sempre esteve presente no homem, apenas esperando para se revelar, logo após a "meninice".
Posteriormente a essas indagações, o personagem se entrega àquele ambiente sereno e afetuoso. O eu-lírico descreve as minudências da beleza que ali ele encontrara. Era um lugar sem leis, pois não as precisava; um lugar sem conflitos sociais, pois ninguém sabia o que era cobiça, egos inflados e outras desventuras.
Mas o personagem, contaminado pelo caos de seu antigo mundo, não entendia muitos dos costumes daqueles homens, e, posteriormente, acabara por ser "a queda do pecado original", como o próprio eu-lírico se descreve.
Ao discorrer sobre suas sensações detestáveis em volta de sua antiga Terra, elucidando, segundo o personagem, " a dor no meu ódio aos homens da nossa Terra", ele alastrou seus defeitos por toda aquela nova Terra, e os homens ali presentes se adequaram de censuras, sentimentos de ódio e muitos outros infortúnios.
Antes presente, a humildade se foi, dando lugar ao egoísmo, como explicita o homem: "Aqueles homens aprenderam a mentir, tomaram gosto à mentira e reconheceram como eram belos".
"...Pode ser que, a princípio, o fizessem inocentemente, por puro jogo, por diversão, que apenas se tratasse de um bacilo; mas este átomo de mentira enraizou-se nos seus corações e foi do seu agrado. Não tardou que dele derivassem a voluptuosidade, e esta voluptuosidade engendrou a inveja, e esta, a crueldade."
Mas a ideia que podemos inferir do clímax da história de Dostoievski é que uma pequena semente plantada pelo homem pode causar um caos irremediável, se alastrando por gerações e gerações adiante.
O homem, mesmo corrompido e vil, possui uma gênese de bondade. Em Dostoievski, a ideia de que o homem nasce bom parece ser plena e cristalina. Até mesmo o personagem, niilista e alheio ao que lhe rodeia, afirma que "amava a dor", mas apenas para ele mesmo, não para os outros, no momento do clímax da obra quando ele percebe que não era tão indiferente ao sofrimento alheio.
Em Gênesis 1 e 2 temos algo que contraria ponto axial que Dostoiévski e, mais tarde, o existencialismo pregaria: "Tudo o que Deus cria é bom; o mal entra no mundo através da autossuficiência do homem, e se desenvolve e cresce até afogar o mundo."
Deixando de lado a questão mais aprofundada da fé, uma leitura otimista que pode ser feita de tal cenário é a de que, se um homem apenas pode destruir um mundo inteiro, um homem apenas também pode ser a salvação, ou ao menos possuir a vocação para tal, não a toa o eu-lírico desperta entusiasmado para espalhar as boas novas, anunciar a verdade vista em seu sonho.
Talvez, o ponto mais chamativo é a ideia de que o homem ridículo de Dostoievski tenha amado aquela nova Terra mais ainda após a inserção do mal. "A Terra por eles manchada parecia-me então mais valiosa do que antes, quando era um paraíso, e isso apenas porque nela aparecera a dor".
O Ponto de encontro
Enquanto o personagem dostoievskiano caminha da obscuridade para o júbilo, Ivan Ilitch, de Tolstói, se alheava quanto ao processo de reflexão durante sua estadia em vida e perde um precioso tempo que lhe atira para a melancolia do nada ao fim de sua vida. A intertextualização entre as obras de Tolstói e Dostoievski não é palpável, mas pode ser uma sinalização de discursos antagônicos que, de alguma forma, podem se entrelaçar.
Ivan Ilitch nutria uma profunda certeza durante sua vida e um amor à vida social que construira com o passar dos anos. Nas palavras do próprio Tolstoi, "a alegria que Ivan encontrava no trabalho era a alegria da ambição; as alegrias da vida social eram as da vaidade". Ivan Ilitch "se mata" sem perceber ao antepor valores supérfluos em vez dos bens da alma, como parece apontar o espiritual Tolstoi.
Por outro lado, o eu-lírico de Dostoiévski compactua com o sentimento de indiferença e de desilusão. Não possui expectativas, perdera o irmão e a esperança no próprio conceito de humanidade, banhada em ódio e ignomínia. A morte, o suicídio seria uma saída para o personagem.
Em Tolstói, a ideia de morte é similar. Ivan reluta em aceitá-la, mas nos momentos derradeiros submete-se a ela com alguma tranquilidade, quando "percebe com nitidez que aquilo que o atormentara e o oprimia se ia dissipando, escoando para fora do seu corpo por todos os lados ao mesmo tempo".
Decerto, a morte e sua imprescindibilidade é um dos pontos em comum nas obras dos dois autores russos. Em outras palavras, uma correlação clarificada entre Ivan e o homem ridículo de Dostoievski é a revelação que lhes fora imposta em contato com a "situação-limite", para usar um termo de Karl Jaspers, isto é, a morte.
Mas tal fato não parece ser tão inédito, uma vez que a obra de ambos aborda essa temática com alguma frequência. O que pode chamar a atenção é o que separa as duas histórias, como dito, os extremos altamente opostos: a cegueira excessiva de Ivan em relação ao aspecto existencial e o exagerado pessimismo do homem ridículo de Dostoievski em relação ao mesmo aspecto existencial.
Enquanto um buscava escapar da morte, imaginando não merece-la, o outro a entendia como uma solução para as duas dores. Não tão ironicamente, este se salva ao passo que àquele se entrega à submissão da carne ao fim.
A contenda de Ivan Ilitch é mais árdua nos momentos finais pelo fato de que ele não amava a dor como o eu-lírico de Dostoiévski. Quando se compreende e aceita aquilo que lhe cria repulsa, o homem consegue vivê-la de maneira mais combatente. Ivan passou boa parte do seu tempo preocupado com bens supérfluos e não levava em conta os pormenores existenciais.
Por mais que o eu-lírico de Dostoievski desejasse colocar um fim em sua própria vida, ele tinha em si um fio de salvação, que ao final lhe salvou. No sonho, o homem atira contra seu coração, e não contra a cabeça. E isso não é um mero detalhe que passe desapercebido. Dostoievski aqui é brilhante e enigmático.
É patente que a atenção existencial é maior no homem ridículo de Dostoiévski. Ivan Ilitch, questionando seu merecimento naquela agonia, se pusera a se torturar constantemente. A iminência da morte pôs Ivan a desconfiar de sua integridade durante a vida. Era inadmissível aquele castigo, visto que sempre fez tudo certo, segundo ele. "E se toda a minha vida, a minha vida consciente, tivesse sido realmente errada?"
O eu-lírico de Dostoievski, por sua vez, era condizente apenas com certezas, tanto no início da obra — quando decidira que nada mais o afetava e que buscaria a concretização do suicídio —, como no final quando descobre a "verdade" revelada em seu sonho e se propõe a anuncia-la.
Por outro lado, bastou o caos de um só homem para contaminar um mundo inteiro em Dostoievski, assim como a sensação de alívio de Ivan Ilitch era subjugada por qualquer aborrecimento nos afazeres cotidianos que a dor retornava ao âmago do personagem de Tolstoi, como o mesmo descreve: "Ivan fazia o possível para se persuadir de que sua dor estava melhorando. E conseguia enganar-se. Mas bastava um aborrecimento para que seu estado imediatamente se agravasse".
Os apontamentos da fragilidade são patentes, do ponto de vista cosmológico, por parte de Dostoievski, e do ponto de vista físico e existencial em Tolstói.
Para concluir, um dos pontos mais presentes nas obras é a responsabilidade intersubjetiva, isto é, a responsabilidade sentida para com o próximo, como enunciada anteriormente ao desvendarmos as sensações de Ivan Ilitch.
Ivan se preocupava com o olhar julgador dos outros. O eu-lírico de Dostoiévski atentava-se mais para o amor com o próximo, no cenário final da leitura. Dostoievski singulariza um ponto principal que deve ser combatido ao final:
O conhecimento da vida está acima da vida; o conhecimento da lei da felicidade... está acima da própria felicidade... Eis aí aquilo contra que se deve lutar. E eu lutarei contra isso! Se todos quisessem, tudo mudaria sobre a Terra num momento.
As duas obras são fundamentais para entender as particularidades e as convergências dos autores. Abaixo o link para a leitura completa dos dois romances:
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