O perigo da submissão em "Nos Cumes do Desespero", de Emil Cioran
Emil Cioran certamente possui seu nome tatuado nas entranhas do niilismo contemporâneo. A visceral escrita do filósofo romeno emana uma paixão melancólica abissal. Escrito quando tinha apenas 22 anos, "Nos Cumes do Desespero" marca a entrada ao universo niilista pelo jovem autor, vencedor do Prêmio Jovens Escritores. O lirismo robusto e pessimista do autor convida o leitor a uma divagação sem censuras pelo mais obscuro dos caminhos existenciais. Não obstante, o enfoque central aqui se pauta nas divagações mais anímicas, relacionadas ao sujeito do lirismo.
Dono de uma dissertação pesada, intimista e complexa, o escritor romeno trata de dezenas de temas inseridos no escopo espiritual. O ser lírico, a agonia, a irracionalidade cosmológica, o desespero, o grotesco, a morte, a melancolia, a lógica, o acaso, etc. Todos os temas se confluem a uma necessidade de maturidade absurdamente estranha para um garoto, detentor de uma escrita pesada, difícil e repleta de alegorias. Ao final do tópico "Eu e o mundo", Cioran admite a surpresa ao fato de que, em meio a seu vigésimo segundo aniversário se considere já tão cedo um "especialista do problema da morte".
À luz da modernidade, a obra de Cioran é uma forte ameaça à estabilidade do instável. O livro é um campo minado para uns, e um passeio literário para outros. É uma literatura instigante e, ao mesmo tempo, perigosa. Não hei de fazer juízo aos escritos aqui abordados, tampouco elevá-los a uma verdade universal, coisa que é inclusive combatida pelo próprio autor no decorrer dos versos. Não é preciso ressaltar as restrições em tais escritos para aqueles que precisam incessantemente de uma paz psíquica.
A inquietude era parte do processo identitário de Cioran, assim como outros possuem nuances diferentes que lhe definem um significado. O romeno desprezava, como ele mesmo nos conta na obra, "a ausência do risco, da loucura e da paixão". Cioran é, de forma confusa, um apaixonado pelo lirismo, pela intensidade, seja ela melancólica, agonizante, louca ou alegre.
Submissão à vontade metafísica
O niilismo de Cioran reside numa entrega à vontade contingencial que nos rodeia, numa percepção de que a "energia louca" é tão mais inútil quanto desesperançosa, a mesma "energia louca" que o escritor descreve como sendo uma de suas primeiras alternativas antes de abandoná-la e mergulhar nas profundezas da veracidade do irracional. A irracionalidade nos rege. A razão não é um processo de salvação. Antes ela se transforma numa arma com o cano apontado para a cabeça do próprio atirador.
É nesse pessimismo que Cioran escancara o caráter desprezível do combate. Ele escrevia sobre a agonia como uma entrega, não uma luta. Escrevia também sobre o espírito como um meio pelo qual nasce o desequilíbrio, e não a salvação. A filosofia de Cioran é a filosofia da submissão cosmológica, da entrega ao inescusável.
Semelhanças com Nietzsche e Freud
Em certo momento, a niilização do autor parece recorrer tanto ao ressentimento, quanto à transvaloração. Esta última por vias perturbadoras. Cioran propunha uma resolução radical. O método da agonia igualaria os diferentes, os falsos e os hipócritas aos que sofrem, trazendo-lhes o bem, a autenticidade.
Cioran transfigura os valores, como Nietzsche assim fez para detratar a moral limitante. O autor, entretanto, parece abraçar o abismo nietzschiano, o qual sempre olhava para o homem que ousava encará-lo. O romeno entende que não é o abismo que responde ao olhar humano. Antes de tudo, o abismo nos respira apaixonadamente, como uma imanência cosmológica. Em Cioran, o abismo é romantizado e elevado a uma necessidade apaixonante. A similaridade com Nietzsche reside nessa elevação dos respectivos conceitos abordados como causa de uma possível eliminação da mediocridade. Cioran elabora uma metáfora onde diz querer "elevar a temperatura do mundo" a fim de eliminar as falhas corriqueiras dos homens, medíocres e pérfidos.
Com a transmutação metafórica e brutal de Cioran, a humanidade se olharia no espelho e veria sua fraqueza vil. O método da agonia, para Cioran, traria seriedade, afundaria a mediocridade trazendo consigo um equilíbrio cósmico. O autor aponta sua visão espiritual como uma espécie de objetivismo para a salvação, não apenas isso, mas o único objetivismo possível para uma relação de causa e efeito em um universo contingencial. Parece ser descrito que, contra as armas do acaso, apenas o caos anímico as enfrentaria de igual para igual. Num universo regido pela irracionalidade, apenas a agonia resolveria o problema da mediocridade. Se, para Nietzsche, a moral é o controle remoto utilizado pelos fracos para subjugar os fortes, em Cioran, a racionalidade é a artimanha dos medíocres que sufoca a profundidade dos agoniados.
Morte da razão
O que mais chama atenção é o embate entre Cioran e as correntes racionais de sua época. Ao condenar a hipocrisia dos filósofos, estes como portadores do medo velado da morte, mas que a pregam como um fenômeno solúvel, Cioran demarca a filosofia como "a arte de mascarar seus tormentos e suplícios". Não há solução, esperança, tampouco objetivo para o problema da morte, da angústia universal, etc. O homem que mascara tais soluções é tão somente uma própria vítima do desconhecimento metafísico da vida. Esta sendo, de acordo com Cioran, uma "quase totalidade de agonia". Enquanto os filósofos pautam seus sistemas lógicos na agonia da morte, a agonia da vida lhes é estranha pelo fato de a própria vida coexistir com a esperança. Esperança que morre em Cioran de forma gradativa. Há uma noção de morte viva nos versos do autor. Daí a noção de que o abismo nietzschiano, em Cioran, nos respira em vida.
A todo momento em que há a agrura da agonia, há a vitória da morte. Aqui reside mais uma prova de que a filosofia de Cioran é submissa e contra-intuitiva, e se entrega de bandeja ao suplício, pois a luta contra algo implacável afunda-nos no fracasso. Estaria na niilização a resposta para uma convivência com o Nada. Toda luta exacerbada contra o invencível, na concepção do autor, exibe o grotesco, aquilo que nos assusta em nós mesmos, os instantes de feiura anímica, de náusea. O grotesco é a personificação do desespero e do pavor a si mesmo. De acordo com Cioran, "é nele que se é objetivado o desespero", e representa "a negação absoluta da serenidade".
A razão nos porta para um viver presente, e uma agonia apenas na iminência do Nada, da morte como substância. Por outro lado, portanto, quando não há o preparo realista para a morte viva, a convivência com o inevitável terror vivo explana o mais deplorável no homem. O sentimento ilusório da eternidade nos é enfiado razão abaixo, não como uma verdade, mas como uma concepção utilitária de relaxamento ante às intempéries da vida.
O autor romeno ainda parte para um radicalismo que beira ao anticientificismo quando nos escreve que "todo produto exclusivo do esforço e do trabalho é desprovido de valor", trazendo a ideia, expressa por Carl Jung posteriormente, de que "à medida que aumentamos o conhecimento exato, puro e científico, diminuímos o grau de humanização do mundo".
O medo do real e o medo do passado
É notório a importância que o autor dá à sensação de "morte-viva", experimentada nos cumes da vida e do próprio desespero. Antes de exaltar a morte, ele relega-a a um outro plano, ainda que ela seja uma substância central na obra do filósofo. O autor preocupa-se mais em mostrar que o medo da morte não é mais vital que o medo da loucura, do grotesco, o verdadeiro "real" presente em nós.
"Assim, ainda que persistente e essencial, o medo da morte é menos estranho que o medo da loucura, onde nossa semipresença é um fato de inquietude bem mais complexo que o terror orgânico da ausência total provada diante do nada"
Estar num mundo, tanto externo quanto interno, onde nossa própria presença não é sentida (medo da loucura) é tão mais estranho que estar no nada, onde a quietude da morte nos iguala em carne e em espírito (medo da morte). Daí germina-se o grotesco e o medo do real é tão patente quanto a veracidade da morte futura. Não a toa Cioran era um apaixonado pelo risco e pela loucura, como descrito no início. Sua filosofia aceitante lhe dava respaldo para transcender sem ter nada a perder.
Mas o passado e o sangue pelo qual construíram o solo que o sustenta lhe perturbava ainda mais, como exposto pelo autor. Um das mais singelos incômodos de Cioran residia na dependência do passado, quando homens morreram para que nos fosse possível viver.
E se houvessem somente razões absurdas para se viver? O mundo não merece que a gente se sacrifique por uma ideia ou uma crença. Nós somos mais felizes hoje porque outros o fizeram para nosso bem? Que bem? Se alguém sacrificou-se verdadeiramente para que eu fosse mais feliz no presente, eu sou, na verdade, mais infeliz do que ele, pois não concordo em fundar minha existência sobre um cemitério.
A conexão intersubjetiva entre os homens atuais e os de outrora suscitam uma capacidade de impotência ante à história. Morreram para que pudéssemos viver. Antes fosse uma evidência meramente bíblica e messiânica, a qual há uma generalização da aceitação de tal fato religioso. Mas é, na verdade, uma noção coletiva do passado histórico que concede nosso bem-estar versado em seu próprio sangue.
Do ponto de vista da significação, Emil Cioran exprime que aqueles que morreram por nós foram mais felizes. Eis a "ironia suprema" exposta pelo autor. É o peso da responsabilidade de assentar nosso progresso sob as duras penas dos que se foram, mais a paralisia individual relacionada à inferioridade que sentimos em comparação aos que lutaram pelo hoje. A história do próprio Cristo representa o arquétipo do sacríficio geracional. Os cristãos se colocam abaixo do cristo salvador de forma consciente. Mas os homens que sobreviveram ao processo da nossa geração alimentam um receio de se renderem aos sujeitos do passado, por ego, medo ou responsabilidade. A relação arquetípica de Cristo é talvez a grande herança bíblica que foi passada à humanidade para estandardizar a capacidade de barganha com o futuro.
A partir dessa noção histórica do anterior, origina-se uma consequente nulidade por parte do homem moderno em relação a sua própria cruz. Cioran escrevia que ainda que sentisse sua tragédia como "como a mais grave da história", carregava consigo "um sentimento implícito de sua insignificância".
A existência está repleta até o topo de dualidades paradoxais e degeneradoras do homem. A sensação da tragédia, que remete à importância do objeto trágico, seguida de sensação de insignificância do mesmo objeto, o Eu. É nessa toada que a subjetividade atinge níveis entrópicos abissais transformando o existir em um vasto jogo, numa contingência suprema, num holocausto ansiolítico da serenidade. É esse o combustível da neurose, se quisermos pensar de um prisma mais psicanalítico
Igualdade entre vida e morte
Quem quer que aspire a ter da morte uma ideia precisa demonstra não ter um sentimento profundo, uma vez que ele a traz em si mesmo. Todo homem traz em si, não somente sua própria vida, mas também sua morte.
À noção de morte e vida em Cioran, podemos remeter à concepção freudiana de Eros e Thanatos; o instinto construtivo de vida e seu oposto instinto de morte, que nos atira de um estado orgânico a um vislumbre inorgânico original do ser.
No fim do tópico anterior, é evidente um ponto de intersecção entre morte e vida. Na obra, é descrito pelo autor o processo da morte em um ser humano que, não sobrevive (mentalmente), mas que continua a viver apesar de sua coexistência com a agonia que origina a vitória da morte, a morte viva, que caminha perturbadoramente ao lado do sujeito em vida. Aqui nasce a ideia do escritor de que a vida é uma agonia tanto quanto a morte. Após o esgotamento, o homem, morto em si, continua a viver como se estivesse preso a uma sentença unívoca e cosmológica de conviver com o absurdo.
O esgotamento é a última instância vista pelo homem antes de cair nas garras da agonia implacável. Esgotar-se é a assolação do escudo último que nos protege da veracidade da agonia. Daí a afirmação de Cioran de que em toda agonia reside o triunfo da morte, um triunfo gradual e incessante.
Uma vez passado o esgotamento que levou a tal ponto, o grotesco pode emergir, a vergonha da loucura num momento de lucidez, o desencaixe na contingência, na irracionalidade do universo.
Todo o processo de esgotamento, de agonia, de morte viva, é apenas uma preliminar da visceralidade seguinte que reside na vivência pura do desencaixe. Viver consigo mesmo após a vergonha do acovardamento ante à morte viva, ante à agonia do suplício, é o ponto precípuo, e velado, de Cioran. O homem torna-se um "morto-vivo" após a experiência do esgotamento.
Há dois tipos de agonia descritas pelo autor indiretamente: A agonia última, ligada à proximidade das fronteiras da morte; e a agonia durável, ligada às "primícias da vida". Cioran parece atentar com algum esmero ao clichê de procurar na agonia da vida o que não se consegue encontrar na agonia da morte. A vida é agonia, disse o autor, exatamente pelo fato de que nos cumes da vida, nos cumes da incerteza, há um resquício de noção do desespero, da queda, da morte.
A agonia lenta e progressiva em vida é reveladora, e exibe os mecanismos que definem uma significação do ser, mais abrangente do que a agonia última. A agonia lenta e progressiva seria o longo-prazo, o qual não tomamos consciência total de sua profundidade, exatamente por este também ser progressivo, tal qual a agonia lenta, e imperceptível à razão primitiva do homem.
A partir de então, nasce uma negação à agonia em vida, onde o sujeito se direciona apenas para as "revelações" na proximidade da morte, como se esta não fosse uma substância intrínseca da própria vida, uma necessidade dialética. As revelações em vida, de acordo com Cioran, são tanto mais evidenciáveis e significativas do que as sinuosas revelações na iminência da morte.
Durante todo o tempo, o homem exterioriza a morte como algo estranho a si mesmo, até que a morte o alcança gradualmente, o surpreendendo. Daí nasce a noção subjetiva e própria de morte, desfazendo-se de quaisquer resquícios externos relacionados a ela, escancarando, pois, a noção de morte viva como algo imanente. A percepção disto advém da interiorização abruta a partir do momento em que o homem "dependura-se sobre si mesmo".
É como enxergar o fim do mundo do outro lado do hemisfério ou ver a agrura de outrem, achando ser algo distante de si mesmo. Mas quando o fim do mundo ou a dor suprema nos bate a porta, somos surpreendidos em saber que estamos suscetíveis às mesmas obscuridades. Aí entra a agonia da percepção, a agonia de saber que é humano. Portanto, a ideia de uma energia homogênea, em síntese, que reúne tanto a morte quanto a vida, é plausível e levemente conectada à concepção psicanalítica expressa no princípio desse tópico.
Outro ponto precípuo escancarado na obra é a estetização da melancolia, diametralmente distinta da profundidade inalcançável da tristeza. Os dois conceitos, melancolia e tristeza, são abordados com cuidado por Cioran, que procura diferenciá-los em suas gêneses. A melancolia é prima-irmã da romantização, do estético; a tristeza empresta a nós um pequeno vestígio da morte. "Eu sei por que sou triste", explica Cioran, "mas não saberia dizer porque estou melancólico". A melancolia nos abre um espaço para o posterior, para esperança terrena. É um estado contemplativo. Por isso a romantização da melancolia é tão adorada e às vezes até necessitada nas artes, seja em músicas ou pinturas expressionistas.
Conclusão
O perigo imanente da obra habita na inconsistência psíquica do homem, discutida inclusive pelo autor no decorrer das páginas. O caos da interpretação de escritos tão silenciosamente desesperadores perpassa um alargamento subjetivo enorme. Há quem se salve e quem morra pelo mesmo motivo, e uma obra literária não escapa a essa regra. Cioran concluiu que suas noites de insônia lhe deram um dom lírico, servindo tanto para o bem, para a contemplação estética de uma literatura vasta e intimista, quanto para a aflição submissa do homem desnudado da esperança.
O livro "Nos Cumes do Desespero" é uma gangorra de sensações, um diário da alma. O perigo da submissão está no fato de que a dor é inerente, mas a ação para com ela não é impessoal; se Cioran se definiu a partir dela com a submissão do espírito, e sua exposição lhe trouxe um sentido microestrutural, haja visto que, em uma escala maior, o autor descreve a dispensabilidade do sentido cosmológico ao ser, há quem leia a obra e se entregue à submissão da carne e do sangue.
Ainda que a vida me seja um suplício, eu não pude renunciá-la, pois nãocreio que sejam absolutos os valores em nome dos quais me sacrificaria. Paraser sincero, eu deveria dizer que não sei por que vivo, nem por que não parode viver. A chave está, provavelmente, na irracionalidade da vida, que fazcom que ela se mantenha sem razão.
Talvez o trecho acima nos traga algum fio de esperança numa escrita tão densa e obscura. Renunciar ao viver é fixar um ponto no qual se justifique o sacrifício. Além da incredulidade terrena em um valor pelo qual sucumbir, o sujeito melancólico tem em si uma negatividade voltada apenas ao anterior. Como dito por Cioran, o estado melancólico é mais um "humor temporário" do que um estado constitutivo. Ela exprime o anterior, pois os valores do porvir ainda tendem a desabroxar, e uma redenção potencial aqui nos empresta seu auxílio. Por vias mais niilistas possíveis, tal redenção ainda suscita algum vestígio luminoso, uma luz no fim do túnel da agonia e do desespero niilista.
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