O benefício da dúvida em "Ciência e Pseudociência", de Ronaldo Pilati

Entre incredulidades e certezas, o cerne de toda questão a se descobrir é pontuado pelo método científico, com ratificações epistemológicas e certa "paciência". Ainda que haja certa descredibilidade em relação à cautela científica, a metodologia, como um fenômeno universal, construiu fortes bases no decorrer das gerações. Por outro lado, ante aos resquícios primitivos da descrença científica, a obra do psicólogo Ronaldo Pilati busca trazer à tona explicações em torno do motivo pelo qual ainda somos "máquinas de crença", nas palavras do próprio autor.

A ciência é contraintuitiva até mesmo para o ator científico. É necessário um desprendimento do objeto para a saúde do método. É preciso abrir mão da certeza e da verdade, como dito por Karl Popper. Ronaldo Pilati parece nos convidar para uma realidade complexa, mas a melhor e mais eficiente que possuímos. A falácia naturalista, que seduz o ser-humano a crer que tudo que nos é evidente pela natureza é válido e benéfico; a lógica bem elaborada, que cria sentido artificial para algo não científico. O livro traz a tona complexidades que vão contra o caráter associativo que possuímos em nosso cérebro.



Nada que é irrefutável é científico

Pilati elabora uma explicação em torno dos vieses cognitivos, que vão desde uma busca exclusivamente unidirecional às explicações que validem o que acreditamos, até a submissão às falsas autoridades com supostos métodos "científicos",  que tendem a tornar a metodologia científica infalível, algo diametralmente oposto à sua gênese: o fato de que a ciência só pode ser categorizada como tal se houver como falseá-la, isto é, pô-la à prova. Tudo que remete a um entendimento irrefutável, tal qual a convicção na vida após a morte ou um ente supremo regendo o universo, não adentra no método científico, por razões que explicaremos a seguir.

As crenças infalíveis são "sistemas que por sua natureza ou estrutura argumentativa, não são possíveis de serem consideradas falsas, explica o autor". Por exemplo, não refutar a crença em extraterrestres, como é mostrado num exemplo de Pilati, poderia trazer a ideia de que sua existência é verossímil, quando tão somente, na verdade, a infalibilidade de algo, cientificamente, nos traz a noção de inverossimilhança. 

A criação de ideias sedutoras para a mente alimentam a necessidade de associação cerebral daquele "fato" a uma verdade almejada inconscientemente. Por isso que os charlatões cientificistas elaboram uma congruência lógica em torno de algo infalível e anticientífico. É o famoso "falar o que o público quer ouvir". Se o coaching quântico explana a possibilidade de alteração de uma realidade pessoal através de "vibrações" ou "saltos quânticos", uma pessoa afundada em tribulações, decerto, irá ao menos parar para ouvi-lo. A dificuldade de apreender, por exemplo, o fenômeno quântico como algo probabilístico é patente. Se algo escapa ao nosso controle, é perigoso ou descartável enquanto método. Por essa razão, quem "exatifica" ou determina um ponto fixo em algo variável possui ouvidos atentos direcionados a ele.

O psicólogo social pontua que a inerência da existência de uma segurança em sistemas infalíveis já era compreendida por diversos outros pesquisadores. Pilati reitera algumas vezes que a racionalidade e a construção lógica não são fundamentos precípuos de uma ciência, mas sim a possibilidade de submeter os argumentos elaborados à testes. Pode até parecer haver alguma "lógica" embutida na concepção de que podemos modificar a realidade através do manuseio energético dos elétrons que fazem parte dos átomos que constituem a matéria. Mas apenas parece. 

O modelo geocêntrico, por exemplo, era um tanto quanto intuitivo. O meio pelo qual a terra era compreendida como o centro do universo, na antiguidade, estaria na concepção lógica e visual de que víamos o sol "passear sobre nós" ao se pôr e ao nascer. Seria difícil, com a escassez científica da época, falar algo diferente do que o geocentrismo explicava.

Os mesmos charlatões do método pegam carona na própria acepção de ciência. A paciência do método científico sofre ataques pseudocientíficos que, supostamente, complementariam aquilo que a ciência ainda não estruturou numa totalidade. É o que Pilati chama de argumento somatório. A pseudociência "auxiliaria" a ciência.

O relativismo e as tendências sociais

O fenômeno grupal é importante para entender o porquê de acreditarmos em algo. A psicologia social expõe que quanto maior a ambiguidade de uma situação, mas tendemos a corroborar com a forma que nosso grupo social entende.

A ideia do relativismo empresta-nos aqui sua (ir)responsabilidade. Entender a verdade como relativa nos porta uma noção de que tudo é possível, e tudo pode ser encaixado dentro de artificiais interpretações que supostamente podem ser reais. "A realidade não é, necessariamente, relativa ao observador", explica Pilati, mas "independente dele".

A independência da realidade ao ser humano parece trazer angústia ao homem, pois a ideia central parece incidir no fato de que a transitoriedade do método científico não traz segurança necessária para o ser humano, que busca incessantemente certezas pela qual possa alicerçar sua estadia no tão desconhecido e vasto universo. Daí a afirmação de que o homem é propenso a seguir o social, numa coletivização da inquietação em volta das dúvidas científicas. Quanto mais pessoas se voltam contra algo complexo, maiores suas divergências em volta da desconfiança desse algo, não por apresentação de fatos que o contradigam, mas pelo efeito manada produzido pelo simples fato de incompreensão por parte do todo social.

A complexidade da interdependência entre as distintas ciências é abordado de forma exímia pelo autor. Tais ciências, ao se confluir, englobam mais necessidades de esforço para apreendê-las. O ser-humano tende a negar tudo aquilo que ele não entende. O fato de que há a interação entre diferentes níveis de análise, que vão do "atômico ao cultural", nas palavras de Pilati, suscita um afastamento e uma desistência de boa parte da comunidade em relação ao método. O autor aponta que "as particularidades entre diferentes áreas da ciência são necessárias para viabilizar respostas às perguntas que motivam uma pesquisa".

Durante toda a história, somos compelidos a crer no caminho que nos leva ao que queremos. Residiria na capacidade de diminuir o erro, e não de perseguir o acerto, o ponto capital para incrementarmos a humildade e a destreza científica.

Pseudociência não é a única "anticiência"

Cuidadosamente, o autor procura ser mais completo na semântica dos termos que regem a temática do livro, ao expor a diferença entre os métodos que confrontam a ciência quanto a sua veracidade.

A pseudociência, como exposto previamente, traduz-se como um meio pelo qual é gerado um conhecimento infalível, que não pode ser contrariado. O viés prejudicial dela habita na sofisticada elaboração lógica do método.

A protociência, por sua vez, caracteriza-se pela "pressa", digamos assim, de alçar ao status científico algo que ainda não passou por todas as fases do procedimento de ratificação de sua eficácia. Pilati faz uso do exemplo da fosfoetonolamina, a pílula do câncer, que, em meados da década de 1990, fora estudada como tratamento para a doença. A crença em depoimentos fora de um estudo sistêmico induz outros a crer imediatamente na eficácia, desconsiderando os casos negativos, ou até mesmo o famigerado efeito placebo, a ingestão de uma substância inerte que, psicologicamente, leva o paciente a uma melhora. Daí nasce a divulgação sem precedentes do medicamento, e a crença forçada de ele funciona, através de uma lógica inicial que apontava tal caminho. O autor indica que a protociência necessita de ajustes para possuir credibilidade metodológica.

A ciência picareta, como Pilati chama, é um outro ramo que faz uso de parte do método científico, não para complementá-lo ou ser uma alternativa, mas sim para desmerecê-lo. Há também aqui a pressa para determinar uma relação causal. Relação essa que é comum, por exemplo, entre a taxa de morte de determinado grupo de pessoas com comorbidades e a imunização com vacinas. Geralmente, o relativismo permite que relações estapafúrdias sejam feitas em nome da recusa à ciência tradicional.

Conclusão

Decerto, o homem coletivo não se preparou para lidar com o “não sei”, e cavar explicações nas raízes das presunções retorna ao conspiracionismo chulo. O duvidoso se assemelha ao remédio impalatável, mas curador. Acreditar na dúvida transpõe uma autonomia ao ser. É parte do princípio científico que, a despeito da convenção pendante que muitos o colocam (a velha história do cientista e sua torre de marfim), expõe justamente a “igualdade”, ou melhor, a “equivalência intrínseca” entre as incertezas, e não alimenta pequenas verdades maximizando grandes mentiras. Em outras palavras, nenhuma ciência deveria desnivelar essa “igualdade” de incertezas. 

Tudo que está presente no ambiente científico pressupõe um "não sei"; um presente prestes a ser desembrulhado com a máxima cautela possível, uma dúvida inerente à própria concepção de ciência. Não é um devaneio entrar nesse assunto. A filosofia permite transcender o que a ciência apenas observa há algumas unidades de distância, mas é nesse balizamento respeitoso que se encontra o homem, perdido na sua limitação dentro dessa tão chique delimitação.

A renegação da dúvida, aliada as suas desvairadas verdades, lhe é tão proporcional quanto o seu medo do passado atrelado à ansiedade de um porvir. De modo que o homem se vê cômodo num futuro que lhe é aprazível exatamente por este ser ainda algo a se construir, aleatório, que dá para "deixar para depois". Mas, por outro lado, bate na concepção psíquica de desordenamento desse mesmo futuro. A história lhe evidencia o medo do passado; sua psicologia lhe escancara o medo do futuro. O sujeito se vê encarcerado a uma jaula psicossocial que de um lado tolhe sua autonomia psíquica, e do outro subjuga seu papel na história. Corre numa linha de um lado para o outro, sendo simultaneamente pressionado pelos extremos historicistas e compelido pelos extremos ansiogênicos.

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