As visões acerca de Deus em Feuerbach, Dostoievski, Freud, Sartre, Jung, entre outros
Introdução
A teologia foi alvo de inúmeras críticas a partir principalmente do advento do iluminismo e dos métodos empíricos e positivistas de épocas que se sucederam — com destaque para o positivismo de Augusto Comte, por exemplo, que se pautaria em métodos observáveis e empíricos em detrimento da metafísica. Desse modo, a concepção de uma origem divina se pautaria num escopo abstrato e falacioso, segundo muitos dos autores contemporâneos, como Ludwig Feuerbach, Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud, Bertrand Russel, Jean Paul Sartre, etc.
Acho pertinente começar pontuando as críticas e divergências acerca da teologia e da imagem divina, especialmente no que concerne ao objeto de estudo da filosofia e da metafísica, e depois para considerações e justificativas de tais críticas.
A religião para os intelectuais
Diante de todas as dificuldades de coordenar um princípio ontológico do ser, filósofos existencialistas e cientistas positivistas se viram de frente com a ética divina e suas perdurações morais ao longo dos séculos. Segundo autores como Sartre, em O Existencialismo é um Humanismo, "todo homem que se refugia por trás da desculpa de suas paixões, todo homem que inventa um determinismo, é um homem de má fé". A liberdade para o existencialismo sartriano se pautaria única e exclusivamente na noção de liberdade, e a consequente responsabilidade. A moral que se ancoram os seres, para Sartre, seria algo falso e dissimulado. Convém ressaltar, portanto, que Sartre se refere à qualquer princípio norteador que os homens se amparam e tentam se eximir de suas responsabilidades advindas da sua liberdade, e não apenas na religião.
Em Genesis 1 e 2 temos algo que contraria o que o existencialismo prega: "Tudo o que Deus cria é bom; o mal entra no mundo através da auto suficiência do homem, e se desenvolve e cresce até afogar o mundo." Essa passagem se torna antagônica ao que a lógica sartriana viria a dizer, porque retrata basicamente que o homem por si só, sem Deus, não se sustentaria e não criaria o bem.
À essa questão, é impossível não lembrar da obra magnífica de Dostoievski , especialmente em Crime e Castigo e Irmãos Karamazov. No primeiro livro, o autor russo retrata a história de Raskólnikov, o personagem principal, caracterizado especialmente por sua inteligência e constante tormento. Raskólnikov, em certo momento, se vê diante de um confronto moral entre praticar um crime ou não, tendo em mente uma ideia megalomaníaca de que ele, homem extraordinário, estaria isento de complicações morais por tal crime; ou seja, a ideia de uma moral norteadora estava em discussão na cabeça de Raskólnikov.
Em Irmãos Karamazov, Ivan, o personagem intelectual, profere uma indagação que seria um dos pilares para a discussão moral no existencialismo nos anos subsequentes; quem já leu a literatura estrangeira, com certeza já se deparou com a famosa indagação da obra de Dostoievski de 1880: "Se Deus não existisse, tudo seria permitido?"
Se adequarmos esse pensamento com o que Sartre, ateu, falaria anos depois, entenderíamos que a resposta seria um sonante "não". A responsabilidade ontológica, de acordo com muitas filosofias do século XIX e XX, seria algo muito mais importante do que uma metafísica menos relevante, por assim dizer, uma vez que para Sartre, nossas angústias advém das possibilidades da liberdade, e não de uma falta de amparo divino, e este, caso existisse, seria apenas uma representação inautêntica do nosso Eu.
Freud falaria algo semelhante em Mal-estar na Civilização, quando afirma que "o sentimento do Eu está sujeito a transtornos, e as fronteiras do Eu não são permanentes". Os transtornos referidos por Freud englobariam a religião, e as fronteiras do Eu seriam invadidas por mecanismos primitivos que seriam as crenças "infantis" em tal religião.
Ora, se utilizarmos Freud para responder a indagação do personagem de Dostoievski, basicamente partiremos para resposta mais direta: não é Deus que nos impede de fazer certas coisas, e sim a civilização. O direito, a ética, a cultura, as distintas personalidades e o medo de agir são mais paralisantes do que seria qualquer dogma religioso, ao meu ver — hodiernamente.
A título de curiosidade, acho interessante citar um nome da teologia que acho ser pertinente: Orígenes, um dos mais antigos teólogos cristãos falava algo no sentido oposto. Para ele, se as leis dos homens não forem contra as leis divinas os cristãos devem seguir as leis dos homens, mas se os legisladores formularem leis que forem contra as leis divinas, os cristãos não são obrigados a seguirem essas leis e devem obedecer somente a lei divina, mesmo que isso implique a sua morte."
Tal pensamento primitivo de Orígenes resultaria não só na desordem das leis seculares, como na "irresponsabilidade ontológica" que Sartre e outros existencialistas denunciariam anos mais tarde.
Com o tempo, os preceitos seculares foram sobressaindo-se sobre os preceitos religiosos. Roger Scruton, principal autor do conservadorismo moderno, nos fala em seu livro Como ser um Conservador que a lei secular se adapta, enquanto a lei religiosa perdura, mas tal perduração foi-se esvaindo com adequações da era moderna e da era contemporânea — Iluminismo, Revolução Francesa, Renascimento, etc.
Desse modo, portanto, a discussão se concluiria no que Ludwig Feuerbach chamou de "ateísmo prático", ou seja, a nossa capacidade prática de agir como se Deus não existisse, mesmo que para nós ele exista. Em outras palavras, o ateísmo prático é aquele que não expomos conscientemente, e sim inconscientemente com nossas ações e nossas morais originais e próprias.
Há de ressaltar que Ludwig Feuerbach faz uma observação que é no mínimo interessante:
Segundo Feuerbach, quando a teologia estuda Deus, ela está estudando uma projeção que o homem faz de si mesmo nessa imagem divina. Então, a teologia perde seu objeto de estudo essencialmente. Logo, de acordo com o filósofo, a teologia não passa de uma espécie de antropologia avançada.
Esse desfecho nos mostra exatamente o âmago da discussão moral: Tudo terminaria, de acordo com o existencialismo e outras correntes, no homem e suas atitudes, influências, incertezas, certezas, abstrações, concretizações, atribuições, etc.
Fiz esse resumo rápido de um assunto bastante abrangente, mas a título de relevância, é notório que a repressão filosófica e científica da teologia pelos autores que vimos até aqui, levou à uma repressão também da metafísica, especialmente pela ciência positivista e filósofos mais empiristas como David Hume, embora Hume seja antecessor de todos os pensadores supracitados.
Voltando à Crime e Castigo, quando Raskólnikov mata uma pessoa, achando que se eximiria da culpa pelo fato de ser "extraordinário", e que nada interpelaria os planos de alguém assim, uma vez que para ele não importaria quaisquer atos se o objetivo fosse "honroso", temos o seguinte diálogo:
– Irmão, o que dizes, irmão? Tu derramaste sangue! – gritou Dúnia com desespero
– que todos derramam – prosseguiu ele, quase frenético –, que se derrama e sempre se derramou em cachoeira neste mundo, que vertem feito champanhe, porque coroam de louros no capitólio e depois chamam a quem verteu de benfeitor da humanidade [...]
Eu mesmo queria o bem dos humanos e acabaria fazendo centenas, milhares de boas ações em lugar dessa única bobagem, que nem uma bobagem é, mas tão só uma falha, pois toda minha ideia não era tão boba assim como parece agora, depois de falhar... (DOSTOIEVSKI, 2013, p. 550).
O fato de personagens históricos serem justificados por seus atos exatamente por seu caráter histórico pautou as atitudes de Raskólnikov. Mas há de se propor uma reflexão:
Deus existe porque Raskólnikov, mesmo certo de sua grandiosidade e imunidade à qualquer moralidade, se sentiu mal e angustiado com tal ato? Ou Raskólnikov teria sido afetado por outro tipo de moralidade?
Estou certo de que nem toda moralidade é divina, e foi na chamada "situação-limite", que dizia Karl Jaspers ser o momento onde temos um contato maior com a nossa transcendência, que Raskólnikov se encontrou ao matar uma pessoa. A verdade se aproximou ao limiar da sua consciência e lhe pairou uma moralidade própria, ou talvez inconsciente, uma vez que Raskólnikov possuía a noção de Deus e de moralidade divina, mas talvez se ele não possuísse tal noção e fosse um simples homem primitivo sem nenhum contato com a teologia ou outro anteparo filosófico, ele praticaria tais atos sem nenhum entendimento moral.
Parece óbvio, mas a natureza humana, a qual os filósofos existencialistas negavam sua existência, parece ser um tanto quanto complexa, e não estaríamos livres de quaisquer alteração ontológicas dentro das nossas atitudes enquanto ente e representação.
Nossas verdades se confundiriam com a utilidade de falsas morais, segundo alguns autores como Bertrand Russel que parte de um ponto similar aos filósofos citados anteriormente e chega na afirmação de que "manter uma crença por achar ser útil e não por pensar ser verdadeira é desleal á integridade intelectual"
Por outro lado, Santo Agostinho nos leva de frente para uma junção entre criacionismo e evolução. No livro biográfico Agostinho (Um Drama de Humana Miséria e Divina Misericórdia), de Huberto Rohden, o autor afirma que "Agostinho insistia em que também o homem estava contido na infinita potencia criadora da palavra de Deus, mas se desenvolveu paulatinamente até ficar como é hoje"
Ou seja, Agostinho utiliza-se da essência cristã, mas pauta a existência por si só no homem. Mais kierkegaardiano que isso impossível. A fé, para Agostinho, se construiu ao longo de sua vida, cheia de incertezas e descrenças, mas ainda sim se construiu.
Carl Jung, numa entrevista, ao ser indagado sobre sua crença em Deus, afirmou diretamente: "Eu não preciso acreditar, eu sei". Aqui, Jung não se refere à imagem de Deus unívoca e compartilhada pela crença ocidental, e sim do deus que criamos em nossas representações. E o fato de que Jung foi o precursor do estudo dos arquétipos justifica sua afirmação.
Conclusão
Portanto, entendo que precisamos compreender a importância da teologia e da imagem divina, mesmo que sejamos o que Feuerbach chamou de "ateus práticos". Seria então, algo não para nos definir, mas para nos auxiliar; algo não para nos nortear, mas para nos tranquilizar. Entendo que a significação de religião de Jung se adequa perfeitamente e partilho de tal entendimento.
Contudo, a discussão que se coloca como agravante da questão religiosa se dá numa esfera mais social e epistemológica, que seria, portanto, um assunto mais complexo para uma outro momento. Por ora, temos que nos ater ao que acreditamos de uma maneira acessória, e não essencial, uma vez que somos livres para escolher, somos responsáveis por isto mesmo que não escolhamos, e tais escolhas seriam muito mais plausíveis se fossemos munidos de nós mesmos, ainda que procurássemos auxílio de algo mais transcendental.
O que importa é o que fazemos conosco, e o que fazemos com o que fazem de nós, como diria um certo filósofo francês.
Indicações
Futuro de uma Ilusão - FREUD
Irmãos Karamazov - DOSTOIEVSKI
Crime e Castigo - DOSTOIEVSKI
O Homem e seus Símbolos - JUNG
Aion: O Simbolismo do Si-mesmo - JUNG
Essência do Cristianismo - FEUERBACH
O Existencialismo é um Humanismo - SARTRE
O Ser e o Nada - SARTRE
Agostinho (Um Drama de uma Humana Miséria e Divina Misericórdia) - ROHDEN
Confissões - AGOSTINHO
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